segunda-feira, 7 de setembro de 2009


A Inveja é uma...*

Da tradição católica como um dos sete pecados capitais à concepção de um sentimento complexo, a inveja não goza de boa reputação. Há aqueles que afirmam não tê-la e outros que acreditam ter aquela que chamam de “boa”. Admitir inveja de outrem não é algo fácil de se revelar publicamente. Por isso, usa-se defensivamente a qualificação “boa” ou “saudável”. Mas inveja é só inveja. Não tem boa nem má.
Confessam-se várias emoções como o medo, o amor, a esperança ou até o ciúme. A inveja é vergonhosa. Mas por que surge essa vergonha? O que é inveja?
A inveja traz sentimentos de inferioridade, dificuldade de aceitação, culpa, sentimento de destino injusto e desejo por algo de terceiros. Apresenta característica própria e distingue-se dos outros afetos. O sentimento de inveja tem parentesco com o desejo e a agressividade. Seu alvo é indeterminado, variando do “qualquer coisa” ao “tudo”. Não é um sentimento simples, possui fatores ligados à intensidade e envolve um conflito emocional.
O essencial da inveja é arrebatar do outro a coisa invejada importa mais do que procurar obter a posse de um objeto semelhante. Na lógica invejosa não existe “objeto semelhante”. Há um objeto único, aquele que o outro tem e a ausência em si faz sofrer.
A expressão do dito popular de que a inveja é a dor de cotovelo traduz bem essa dor psíquica. Com essa dor intensa consumindo sua mente, o invejoso movido pelo ódio procura destruir a alegria alheia. Mas por que tem que ser única a coisa invejada? Porque o objeto da inveja é um objeto imaginário. Uma fantasia de totalidade. Algo que se supõe dar ao seu dono um estado de felicidade, de completude.
O coração do invejoso palpita por um bem que não pode ser compartilhado. Palpita não pela necessidade de ter o que o outro possui, mas pela necessidade de sentir o mesmo prazer que ele, alcançar o mesmo nível de felicidade que supõe ver no outro. O invejoso atribui ao outro um estado de que se imagina privado (“você tem tudo”), e passa a associar este estado à posse de um “algo”, uma espécie de amuleto, do qual é obrigatório privar o outro seja por que meio for (“e eu terei isto...”).
Todos os seres humanos sofrem de inveja, é um sentimento inerente ao humano. Podemos afirmar que a inveja é, de início, inevitável, mas superável ao longo da vida. Em nossa infância desconhecemos a limitação, imperfeição e a finitude como características dos seres humanos. Criamos a ilusão de completude, de onipotência e a descoberta de que não é assim, costuma ser extremamente dolorosa e suscita angústias de extraordinária intensidade.
A fantasia de completude, de onipotência, de tranqüilidade de espírito, não será eliminada com a descoberta que não se é autosuficiente. Ela irá se deslocar para outros setores da vida psíquica. Com isso, tudo aquilo que contribuir para dar a impressão de autosuficiência é passível de ser entendido e fantasiado como uma encarnação dessa ilusão infantil: por exemplo, a inteligência, o saber, o poder, o sexo, o corpo, a beleza, ou a independência de quem “se basta a si próprio”.
A intensidade da inveja vai depender de como se deu o relacionamento da criança com aqueles que cuidaram dela durante o processo de diferenciação entre o seu eu e o outro. Vale ressaltar que a inveja pode ter características construtivas. Isso pode acontecer quando, por exemplo, um indivíduo deseja adquirir para si qualidades, bens e posses que admira nos outros, através de seu próprio esforço. Nessa situação o objeto da inveja torna-se um modelo a ser seguido. Com isso torna-se um sentimento estimulante, aumentando o sentimento de ambição e a competição saudável para se obter o que se deseja.
Como não é possível evitar sentir inveja, devemos-nos preocupar com aqueles que não conseguem controlar seus sentimentos prejudicando os demais. São pessoas que ao depreciar seu objeto de inveja acabam por destruir suas próprias relações interpessoais ou de trabalho.
Existem, também, aqueles que sentem inveja e sofrem com isso, sem fazer nada para mudar suas atitudes. Normalmente são deprimidos, amargos e ansiosos. Procuram fazer papel de vítima provocando no outro sentimento de culpa pelo sucesso obtido. E, muitas vezes, com dificuldade em aceitar seu sentimento procuram bajular o objeto de inveja, depreciando-o quando da sua ausência.
A inveja pode acontecer também entre as diferentes gerações, onde o mais velho inveja o mais novo por viver a juventude numa época “mais fácil” e o mais novo inveja a experiência e a maturidade do mais velho.
Estas diferentes expressões da inveja indicam que as formas de fazer frente a ela podem ser construtivas ou destrutivas, e que ela evoluirá para um lado ou outro dependendo da intensidade do conflito intrapsíquico.
A inveja é uma tremenda complicação psíquica pelas dimensões que pode assumir.
Por uma saúde mental lúcida, cuide bem da sua inveja.

Daisy Maria Ramos Lino

* texto publicado no Jornal de Jundiaí – Caderno Estilo de 18/08/09.

4 comentários:

Mery Yamaguchi disse...

É como fala aquela música do Ultraje:
"Torcer pra que meu sucesso acabe, prá que? Acho que nem vc sabe, eu sei...Vc não pode ser o que sempre quiz, então não suporta ver ninguém feliz...Meu bem, eu sei que o sucesso nem sempre dura, mas a mediocridade não tem cura!"

Daisynha,texto muito bom com análise em linguagem compreensível (coisa rara hj em dia), e bastante objetivo. Bjus

leila veratti disse...

Daisy, querida,
Seu texto está ótimo e expressa muito das questões cotidianas acerca da inveja. Para além de ser um "pecado capital" (e amplie-se aí o sentido de "capital" para os vários sentidos que o "Aurélio" atribui), seu texto possibilita pensar o que fazemos com "a inveja nossa de cada dia." Parabéns pelo texto.
Beijos,
Leila.

Edilaine disse...

Querida Daisy,

Pensar a inveja como inerente ao humano, não isenta a nenhum de nós da necessidade de cuidarmos da "inveja nossa de cada dia", não é mesmo? Bom trabalho, amiga.
bjs,

Edilaine

Daisy disse...

Mery,
Que "auspiciosa" visita!
Não conhecia essa música do Ultraje a Rigor - "A Inveja É Uma Merda".
Grata pelo comentário!
Bjs